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quarta-feira, 24 de setembro de 2025

Guiné 61/74 - P27250: As nossas geografias emocionais (59): CIM Bolama, setembro de 1973, o meu CSM (Manuel Rosa, ex-fur mil, Chefia do Serviço de Intendência, QG/CTIG, Bissau, 1973/74)



Guiné > Arquipélago Bolama - Bijagós > Bolama > CIM (Centro de Instrução Militar > CSM (Curso de Sargentos Milicianos) > c. 1973/74 > O  soldado-instruendo, e depois 1º cabo miliciano e depois fur mil, Chefia de Serviço de Intendência do QG/CTIG, Bissau, 1973/74) (tal como o Carlos Filipe Gonçalv3es).

Fotos (e legenda) : © Manuel Amante da Rosa (2024. Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné.



1. Mensagem do Carlos Filipe Gonçalves (ex-fur mil, Chefia do Serviço de Intendência, QG/CTIG, Bissau, 1973/74)

Data - segunda, 22/09/2025, 13:24

Olá, Luis, Bom dia:

Encontrei hoje por acaso no FB esta publicação do nosso camarada e amigo Manuel Rosa, sobre a sua passagem pelo Centro de Instrução em Bolama. É uma recordação com muitos pormenores. Será que já tinha sido publicado no blogue Tabanca Grande? A data é de 15 de Agosto de 2024. Eis o link:

https://www.facebook.com/search/top/?q=Manuel%20Rosa%20CISM%20Bolama

Segue abaixo a cópia que fiz do post, talvez tenha ineresse.

Forte abraço, vida e saúde para todos nós

Carlos Filipe Gonçalves

Jornalista Aposentado


2. Resposta do nosso editor LG, com data de terça, 23/09/20925, 22:24

Carlos, obrigado, é um achado... Vou publicar, penso que o Manuel não se zanga comigo. Conhecemo-nos pessoalmente há bastante anos (c. 2009). Ele teve a gentileza de ir à minha Escola (Nacional de Saúde Pública, no Lumiar, perto do estádio de Alvalade, do SCP) para me conhecer pessoalmente e partir mantenhas.

O Manuel Amante da Rosa (sic) trm c. 4 dezenas de  referências no nosso blogue. Também é amigo da Isabel Brigham Gomes, que foi minha aluna há largos anos, no curso de Mestrado em Saúde Pública. Mas não tenho sabido notícias dele. Julgo que vive agora no Mindelo (pelo que vejo na página do Facebook). Deve estar aposentado ou reformado...Pertencia ao Ministério dos Negócios Estrangeiros...

Viajei no Geba no "barco-turra" do pai... Dá-lhe notícias minhas/nossas. Dou-lhe conhecimento deste mail, espero que ele ainda use o mesmo endereço de email. Gostaria de poder retomar os nossos contactos. Nunca conheci Bolama, o meu CIM foi em Contuboel (em junho/julho de 1969, na formação da futura CCAÇ 12, uma companhia de fulas, depois colocada em Bambadinca). Mas muita malta do blogue passou por Bolama... Vou ver em que série vou publicar esta deliciosa crónica. Ele sempre escreveu muito bem.

Para ti, um chicoração fraterno. Luís

 
3.As nossas geografias emocionais (**) >   CIM Bolama, setembro de 1973, o meu CSM 



por Manuel Amante da Rosa (ex-fur mil, Chefia dos Serviços de Intendência, QG/CTIG, Bissau, 1973/74, hoje embaixador reformado, Cabo Verde; nassceu em Bolama, filho de pais cabo-verdianos)

 Idos de Setembro de 1973, ainda um imberbe de 20 anos, voltava à ilha de Bolama para assentar praça no único e estafado Curso de Sargentos Milicianos (CSM), no Centro de Instrução Militar (CIM),  que se fazia na Guiné. 

Cmo era o único anual e em pleno território em guerra e confrontos armados, quase generalizada, havia exageros ou “heróis” de aquartelamentos. O CIM não fugia à regra.

Muito calcorreámos e rastejámos pela ilha! Em marchas e patrulhas, diurnas e noturnas, forçadas e esforçadas!! Até a pista de lodo de ir e vir ao Farol fizemos. Só quem andou pela guerra na Guiné sabe o que é ter pela frente lodo para atravessar. Afundamo-nos até à cintura. E a G-3 torna-se maldita. Imprestável. Amaldiçoada a cada avanço.

Num quartel de instrução militar que formava todos os militares de recrutamento local, mais de dois mil por ano, a comida era péssima, em pratos e caçarolas de alumínio e servida em dois turnos ou por vezes três. Asseio nulo. 

Até praga de sarna imputada aos numerosos cães do quartel houve pela unidade. Fui uma das vítimas. Micoses e furunculoses (fui notável vítima desta) eram consideradas normais e havia fórmulas (até número 7, dependendo do grau de infecção) e unguentos militares para tratamento de tudo. 

Mas os Fuzileiros eram melhores. O idoso Sargento Enfermeiro deles, que já tinha passado pela Índia e Timor, após prognóstico errado de dois jovens alferes médicos de que ou teria micose ou sarna, graças a uma feliz intervenção do Imediato da Escola de Fuzileiros, curou-me. Disse ser má circulação e alergia possível ao alumínio. 

Curou-me até hoje. Com autossangue. Ía à enfermaria dos Fuzileiros, tirava-me sangue do braço esquerdo, injetava logo na nádega direita e aplicava no braço uma injeção de immunodol (?), segundo penso. 

No dia seguinte voltava para o braço direito e a nádega esquerda. Quinze dias seguidos e tudo desapareceu. Até hoje!! 

Mas no CIM o nosso soldado maqueiro, que por vezes exalava, pela manhã, um hálito de vinho de caju ou outro, era um autêntico médico de ocasião. Sempre disponível!!

Qualquer infecção, mesmo bolhas arrebentadas no pé ou unhas encravadas e infetadas, tosse, dor no corpo, pangabarriga (diarreias), esquentamentos, sarna e/ou micose era tratado com um "cunto” (injecção de penicilina de um milhão de unidades, aplicada bem de manhãzinha antes do furriel ou médico chegarem bem mais tarde).

Abria o armário, regalava os olhos perante tantos “cuntos” à sua livre disposição e em tão pequeno frasco!! Retirava de um pequeno tacho de alumínio a ferver a seringa e a enorme agulha (ainda não havia seringas e agulhas descartáveis) com um olhar de sabedoria e sadismo que baste! 

Eu fechava os olhos e pedia a Deus para me proteger da agulha. De ficar manco. O maqueiro mandava arrear a calça militar e “pimba”. Espetava a agulha sem hesitação! 

Por vezes a “cuntomania” (um milhão de unidades de penicilina) durava uma semana seguida. Desisti porque a furunculose no meio das pernas não passava. Não havia controlo. Mas nunca me apercebi dessa apetência na Guiné pelas injecções (gudja).

Acontecia ter vómitos imediatos de estômago vazio e sentir o sabor estranho de remédio e sobrevinha fraqueza logo depois. Mas todos sobrevivemos. Fosse hoje!!!

Valeu-me muito fingir que almoçava no rancho (sujava o prato de alumínio porque aqueles “heróis de quartel”, alguns até de pingalins, sempre passavam para verificar)
e depois ir jantar no Palácio de Bolama, onde o Administrador do Concelho era o meu querido e saudoso tio. 

Habitualmente era o último instruendo a entrar na porta de armas antes dela ser fechada às 11 da noite.

E dirigia-me para a nossa caserna onde eu próprio e todos os meus antepassados éramos insultados, vernaculamente e na língua de todas as etnias possíveis da Guiné!! Era a minha boa hora de me desobrigar de me sentir na tropa.

Os insultos eram de “koutina na má” para pior. Dependendo da rigidez dos insultos,  respondia com um “Kuk d’obú”! Ou cantava “Tindon, tindon, obú di lontra, bú rabatal”.(*)

Algo que fazia subir o tom e teor dos insultos na escura caserna. Fazia barulho, acordava alguns mais próximos para perguntar as horas ou me resfolgava ruidosamente. A pior coisa que podia ser feito numa caserna. É um ultraje para a cultura guineense o fazer. Levava de imediato muitos a cuspirem. Palavra!!

A maioria de nós éramos da mesma geração do liceu, tínhamos sido criados juntos e a camaradagem e solidariedade nas piores situações dentro ou fora do quartel era imediata.

Sabíamos que alguns ao fim de 3 anos não sairiam vivos ou ilesos da tropa. A guerra estava no seu auge. O equilíbrio existente até essa altura se desfazia e era percebido. A guerrilha era cada vez mais ativa. E as flagelações aos quartéis mais certeiras. As minas eram cada vez mais implantadas, nas estradas, picadas e trilhos de patrulhas. Faziam muitas vítimas. Mais até que os ataques aos quartéis e emboscadas. 

Havia entre nós a crença de que em patrulhas era melhor usar botas de lona. Porque as minas, se pisadas, somente levariam uma parte do pé. Se com botas de cabedal o sopro levaria todo o pé até onde terminava na canela. Nunca precisei dessa teoria.

Sabíamos também que muitos de nós teriam como destino as Companhias de Caçadores! De recrutamento local, enquadradas por oficiais e sargentos da “metrópole”. Umas espécies de unidades para carne de canhão. Nas piores zonas da “província” !

Lembro-me de ter entrado por duas vezes em vias de facto com dois colegas mais fortes, pelo meio dia, e à tardinha estarmos sentados um ao lado do outro em cavaqueira conversa.

Felizmente e graças a Deus o 25 de Abril pôs fim à guerra! Fomos desmobilizados.

Entramos logo a seguir em novos desafios. Fui ser professor. Mas fica para um outro momento com disposição para rememorar.


(Revisão / fixação de texto, título: LG)


________________


Notas do editor LG:


(*) Último poste da série > 24 de setembro de 2025 > Guiné 61/74 - P27249: As nossas geografias emocionais (58): A Pousada do Saltinho ou "Clube de Caça", com ar de abandono, em maio de 2025 (João Melo, ex-1º cabo op cripto, CCAV 8351, "Os Tigres do Cumbijã", Cumbijã, 1972/74)

(**) Com a ajuda do assistente de IA / ChatGPT, apurei o seguinte:

No crioulo da Guiné-Bissau, insultos como “koutina na má” (“a tua mãe é uma puta”) ou “Kuk d’obú” (“caga no teu pai”) eram das ofensas mais duras, por atacarem a honra familiar. Já cantos como “Tindon, tindon, obú di lontra, bú rabatal” (“Tin-don, tin-don, pai da lontra, tu és feio”) tinham um tom mais trocista, usados para desarmar tensões ou provocar a rir.

Enquadramento cultural do uso e significado destas expressões na Guiné em 1973:

(i) O valor dos insultos no crioulo

O crioulo da Guiné-Bissau tem um repertório riquíssimo de insultos, quase sempre ligados à família (especialmente à mãe e ao pai). Dizer “koutina na má” (a tua mãe é uma p*ta ) era dos piores insultos possíveis, porque atingia diretamente a honra familiar.

Da mesma forma, “Kuk d’obú” (caga no teu pai) é altamente ofensivo, já que desrespeita a figura paterna, pilar de respeito na cultura guineense.
 
(ii) Resposta com insulto ou com canto

Quando alguém insultava, havia duas opções: responder no mesmo tom (com outro insulto ainda mais duro) ou quebrar a agressão com humor ou música.

O canto “Tindon, tindon, obú di lontra, bú rabatal” tem um tom trocista. Não é um insulto tão pesado, mas funciona como uma gozação para desarmar a tensão. O ritmo “tindon, tindon” imita um refrão ou um toque de tambor, quase infantil.

Chamar alguém de “pai da lontra” ou “feio” é mais ridicularizar do que agredir seriamente.

(iii) Contexto em 1973


No tempo da guerra colonial, estas expressões circulavam entre soldados (portugueses e guineenses) e também entre crianças e jovens das tabancas. Eram usadas tanto em discussões sérias como em brincadeiras:  na oralidade guineense, até os insultos podem ter uma função lúdica, de provocação amistosa ou de reforço de laços.

Em resumo: os insultos duros marcavam rivalidade e conflito, mas os cantos e troças ajudavam a aliviar tensões e até a criar cumplicidade

terça-feira, 26 de agosto de 2025

Guiné 61/74 - P27153: A nossa guerra em números (37): Colonos - Parte II: cabo-verdianos (uma pequena burguesia que, na Guiné, foi viveiro de militantes e dirigentes do PAIGC)


Foto nº 1 > Lisboa > s/d > Sede do BNU - Bnaco NacionalUltramarino (Hoje sede do MUDE - Museu do Design



Foto nº 2 



Foto nº 3

Lisboa > Antiga sede do BNU,  na Rua Augusta, que hoje aloja o Museu do Design   (MUDE). Esculturas de Leopoldo de Almeida (1964), que representam a expansão do BNU como banco emissor pelos antigos territórios ultramarinos portugueses, e os respetivos escudos, incluindo a Guiné (cujo escudo é o da direita, a contar de baixo para cima, inspirado no original, a seguir descrito

"Escudo composto tendo a dextra em campo de prata, cinco escudetes de azul, cada um com cinco besantes de prata em aspa e a ponta, de prata com cinco ondas de verde - pretendiam simbolizar a ligação à metrópole; a sinistra em campo de negro, um ceptro de ouro com uma cabeça de africano, alusão ao ceptro utilizado por D. Afonso V, rei de Portugal à época da exploração da região. Brasão de armas simplificado, de 8 de maio de 1935 a 24 de setembro de 1973."

Fonte: BNU. (Reproduzido com a devida vénia...)

Foto nº 4 > Guiné > s/d > s/ l > A embarcação "Bubaque", ostentando a bandeira portuguesa... Antiga LP 4 (Lancha de Patrulha 4, da nossa Marinha, no ativo entre 1963 e 1964), terá sido anteriormente uma traineira de pesca, algarvia... Depois de abatida ao efetivo, foi comprada pelo pai do nosso camarada Manuel Amante da Rosa, antigo embaixador da República de Cabo Verde em Roma. 

Foto (e legenda): © Manuel Amante da Rosa (2014). Todos os direitos reservados. 8Edição: LG]


1. Os colonos na África Portuguesa não eram só cidadãos portugueses da metrópole, mas também das ilhas atlânticas (Madeiras, Açores e Cabo Verde) e igualmente estrangeiros como os libaneses, ou sírio-libaneses (oriundos do antigo império otomano, que emigraram para a África Ocidental nos anos de 1910/20) (*) sem esquecer os luso-indianos de Goa, Damão e Diu, e até os macaenses. 

Já aqui destacámos o papel dos sírio-libaneses, "comerciantes e empreendedores" (*), e falámos da sua presença na Guiné até à independência (em 1974). Falemos agora de outros grupos e comunidades, começando pelos cabo-verdianos (que eram, na altura,  cidadãos portugueses, a quem não se aplicava o famigerado estatuto do indigenato).


(i) Funcionários e Trabalhadores: A Diáspora Cabo-Verdiana

A emigração de cabo-verdianos para as outras colónias portuguesas em África foi um fenómeno de grande relevo.

Impulsionados por secas e fomes cíclicas (1901-1904, 1920-21, 1941-43,  1947/49) e pela escassez de recursos (agricultura, indústria, educação, saúde, emprego, transportes,  etc.) no seu arquipélago, 
muitos cabo-verdianos procuraram melhores condições de vida na Guiné, em Angola, Moçambique e, especialmente, em São Tomé e Príncipe, onde chegaram a constituir uma parte significativa da população. (Para além de terem emigrado para Portugal, Holanda, EUA.)

Dada a sua familiaridade com a língua e a administração portuguesas, foram frequentemente empregados em cargos de baixa e média hierarquia na função pública, nos correios,  nas alfândegas, na banca, bem como em atividades comerciais, transportes marítimos, etc. e em geral como mão de obra qualificada.

Esta posição intermédia na hierarquia social colonial era, por vezes, fonte de tensões com as outras comunidades como aconteceu na Guiné-Bissau, antes e durante a guerra colonial, bem como depois da independência (golpe de Estado de 'Nino' Vieira,  primeiro-ministro, contra o presidente da república, Luís Cabral, em 14 de novembro de 1980, em que os cabo-verdianos foram "demonizados").

Os cabo-verdianos tiveram um papel importante na colonização da África portuguesa, e em especial a Guiné, onde foram comerciantes, "ponteiros", e ocuparam lugares de nível médio (na administração civil, banca, correios, educação, etc.).

A presença e o papel dos cabo-verdianos na colonização da África portuguesa, especialmente na Guiné, foram marcantes e multifacetados. Desde o início da ocupação portuguesa na África Ocidental, a história da Guiné e de Cabo Verde esteve profundamente entrelaçada, não apenas por laços geográficos, mas também por interesses económicos e sociais compartilhados.

Em boa verdade,  a Guiné  foi tratada como uma "dupla colónia", sendo administrada  por  Cabo Verde até 1879, altura em que foi separada das ilhas, passando a ser governada autonomamente.

Os cabo-verdianos atuaram como comerciantes, estabelecendo-se principalmente na zona costeira e nas margens dos rios guineenses, donde desenvolveram intensas atividades mercantis. Esses comerciantes envolveram-se no tráfico de escravos (até meados do séc- XIX), além de serem depois  detentores de lojas e proprietários de transportes coletivos, fluviais e rodoviários, exercendo influência significativa no mercado local.

Além do papel comercial, muitos cabo-verdianos ocupavam posições médias na administração colonial: eram funcionários na banca, nos correios, na educação, e em outros setores de serviços públicos. Na realidade, ocuparam lugares que os portugueses da metrópole não queriam, devido à "má fama" do território (insegurança, atraso, clima, paludismo e outras doenças tropicais, etc.). 

Registe-se, a par disso, a atividade agrícola como “ponteiros”, ou sejam,  
pequenos agricultores que exploravam "pontas" (geralmente hortas, pequenas quintas), em zonas férteis, nas bacias hidrográficas: Cacheu. Mansoa, Geba, Corubal, Buba, etc.

 Os cabo-verdianos na Guiné também foram proprietários de pequenas embarcações e prestadores de serviços de transporte local. Esses serviços fluviais e costeiros eram essenciais para a interligação das comunidades em regiões onde o rio e o mar eram os principais meios de circulação.

Essa posição como donos e operadores de embarcações permitiu_lhes  ser intermediários cruciais nas trocas comerciais e no transporte de pessoas e mercadorias. 

Por estarem nessa interface, os cabo-verdianos mantinham uma relação próxima com o poder colonial, já que facilitavam a logística e o funcionamento dos mecanismos administrativos e económicos do regime português.

Além disso, essa função conferia-lhes um papel importante como intérpretes culturais, sociais  e económicos, mediando entre as autoridades coloniais e as populações locais de diversas origens étnicas e culturais. 

Essa mediação contribuía para que os cabo-verdianos se posicionassem como uma ponte social, favorecendo a comunicação, negociações e intercâmbios entre diferentes grupos dentro do contexto colonial.

É importante destacar ainda a forte componente crioula presente nesse contexto, já que boa parte dos  grupos intermediários que atuavam nesses espaços eram de origem mista, fruto de séculos de convivência e intercâmbio entre Cabo Verde e a região da Guiné. Essa dinâmica reforçou a ligação social e cultural entre ambas as regiões. Por exemplo, Amílcar Cabarl, nascido em Bafatá em 1924, era filho de pai cabo-verdiano, o professor primário Juvenal Cabral, e de mãe guineense, de etnia fula, Iva Pinhel Évora.

Em resumo, os cabo-verdianos desempenharam um papel crucial na economia e na administração da África portuguesa, especialmente na Guiné, forma verdadeiros marginais-secantes, exercendo funções estratégicas como comerciantes, ponteiros, donos de barcos de cabotagem e ocupantes de cargos de nível baixo e médio na sociedade colonial.
 
Sublinhe-se que a atuação dos cabo-verdianos na sociedade colonial da Guiné foi muito além do comércio e da administração, incluindo também um contributo notável na agricultura de pequena escala e de subsistência.


Apresenta-se a seguir um esquema detalhado sobre o papel dos cabo-verdianos na colonização da Guiné, então colónia portuguesa, com enfoque no século XX, complementada por alguns exemplos históricos


(ii) Papel dos cabo-verdianos na Guiné colonial (séculos XIX e XX)

1. Intermediários, "lançados" e gestores comerciais

  • Desde os séculos XVI e XVII, muitos cabo-verdianos, especialmente mestiços e "lançados",  atuavam como intermediários comerciais ao longo da costa da Guiné; filhos de colonos com mulheres africanas, esses indivíduos formavam uma classe de “lançados” que facilitava o trânsito de mercadorias, escravos e informações entre as ilhas e o continente; eles eram peças cruciais na economia regional, estabelecendo redes comerciais e vínculos sociais locais;

  • Companhia de Cacheu, Rios e Comércio da Guiné (1675), criada em Portugal, conferia privilégios aos residentes de Cabo Verde, mesmo sob monopólio, permitindo-lhes embarcar seus próprios produtos e manter certa autonomia comercial na costa da Guiné.

2. Agricultores ("ponteiros"), grandes proprietários, comerciantes e navegadores fluviais

  • O termo “ponteiros” (donos de “pontas”, pequenas explorações agrícolas em zonas férteis) e grandes proprietários agrícolas, como os envolvidos na produção de arroz, corresponde exatamente à presença de cabo-verdianos que, aproveitando zonas férteis nas bacias hidrográficas, ocuparam-se com a agricultura;

  • Além disso, muitos eram donos de embarcações, que operavam as ligações fluviais, essenciais na mobilidade de pessoas e mercadorias na Guiné.

Embora menos documentado com nomes específicos, esse conjunto de funções estava bem representado na elite cabo-verdiana que ocupava o espaço colonial de forma bastante atuante. (A IA não sabia o que eram "ponteiros", tive que lhe explicar... Há subtilezas da nossa língua e da nossa história, que lhe escapam: como também sabia não distinguir "régulo", termo que só existia na Guiné e em Moçambique, e não em Angola).

Historicamente, o termo "ponteiro" está ligado ao sistema de "pontas", que remonta ao período colonial. Estas "pontas" eram inicialmente zonas de controlo comercial, tendo depois evoluído para explorações agrícolas. A relação entre os "ponteiros"  e os  "tabanqueiros", nem sempre terá sido  isenta de tensões e conflitos,  originando dispustas por terras com criadores de gado (nomeadamente,fulas).

3. Funcionários públicos (pequenos e médios), ensino, correios, banca

  • No século XX, especialmente entre 1920 e 1940, mais de 70% dos postos no sector público da Guiné eram ocupados por cabo-verdianos ou seus descendentes; isso incluía cargos administrativos, ensino primário, correios, banca e outros serviços públicos.

  • Esses emigrantes, escolarizados, foram incorporados ao sistema colonial português, prestando um apoio técnico essencial à administração e à expansão estatal.

4. “Crioulização social” e intelectuais cabo-verdianos, ou de origem cabo-verdiana

  • A chegada massiva de cabo-verdianos à Guiné no início do século XX deu origem a uma "crioulização social", um processo que aproximou as sociedades cabo-verdiana e guineense: o elemento cabo-verdiano funcionava como uma ponte entre colonos e indígenas.

  • Alguns exemplos notáveis na área intelectual, cultural,  educacional e política incluem:

    • Fausto Duarte (1903-1953), romancista;

    • Juvenal Cabral, pai de Amílcar Cabral; professor

    • Fernando Pais de Figueiredo: professor primários; ele e o Juvenal Cabral defenderam a expansão e a melhoria do sistema educativo para a população guineense;

    • Amílcar Cabral (1924-1973) (imagem à direita);

    • António Carreira (1905-1994), administrador , investigador, escritor;

    • Artur Augusto Silva (1912-1983), advogado, escritor, jurista, especialista em direito consuetudinário, casado com Clara Schwarz (1915-2017), professora no liceu Honório Barreto;

    • Não sei exatamente quantas senhoras brancas viviam em Bambadinca no meu tempo (1969/71), mas algumas eram cabo-verdianas, como por exemplo  a professora do ensino primária, que raramente era vista, mas que vivia dentro das nossas instalações militares, no edifício da escola, a dona Violete da Silva Aires e sua mãe; muitos alunos se lembram dela, e que depois foram quadros importantes da Guiné-Bissau (de jornalistas a engenheiros),

    • Carlos Silva Schwarz (1949-2012),  engenheiro agrónomo, director executivo da AD - Acção para o Desenvolvimento, com sede em Bissau, particularmente ativo depois da independência; membro da nossa Tabanca Grande.


5. Exemplo histórico destacado: Honório Barreto

Resto da estátua do Honório Barreto.
 Foto: João Melo (2025)



  • Um caso emblemático é o Honório Barreto (1813-1859), de ascendência cabo-verdiana por parte de pai, que exerceu funções elevadas como governador da Colónia Portuguesa da Guiné entre 1852 e 1859;  dirigiu a administração, investiu em agricultura, comércio, educação e saúde e até liderou esforços militares para preservar  o controle português, ao mesmo tempo que os seus negócios de família no Cacheu (incluindo o tráfico de escravos). 

  • A sua figura foi muita mal tratada por gente boçal do PAIGC, a seguir à independência.



6. Resumo

Função / Papel | Detalhes / Exemplos
  • Comerciantes e "lançados" | Ativos nas rotas comerciais da Guiné, frequentemente mestiços com redes locais;
  • Ponteiros / Agricultores / Donos de embarcações de cabotagem | Pequenas explorações e produção de arroz; donos de embarcações nas rotas fluvial;
  • Funcionários da administração colonial | Entre 1920–1940, os cabo-verdianos ocupavam >70% dos cargos públicos; foram administradores e chefes de posto, etc.
  • Empregados e quadros intermédios de importantes casas comerciais como a Gouveia e a Sociedade Ultramarina (ligada ao BNU) | Luís Cabral (***)
  • Intelectuais e professores | Fausto Duarte, Juvenal Cabral, Amílcar Cabral, Fernando Pais de Figueiredo, entre outros.
  • Governança e elite local | Honório Barreto (1813-1859): governador, empresário, administrador da Guiné colonial; filho de mãe guineense e de pai cabo-verdiano

~
Luís Cabral (1931-2009)

Enfim, uma pequena burguesia onde o PAIGC foi buscar muitos dos seus primeiros militantes e dirigentes,  a começar pela família e clã Cabral (Amílcar, Ana, Luís, Lucette Andrade, etc.)

Este é ponto central da história social e política da Guiné-Bissau no século XX: a pequena burguesia cabo-verdiana radicada na Guiné, formada por comerciantes, funcionários públicos, professores, empregados de casas comerciais e pequenos proprietários agrícolas. foi decisiva tanto para o funcionamento do sistema colonial como para a génese da luta de libertação. (**).

Ainda a talhe de foice, lembre-se os nomes de Aristides Pereira, que era chefe da Estação Telegráfica dos CTT, e o Fernando Fortes era o chefe da Estação Postal, na prática os "donos" dos CTT , em Bissau.


PS - É difícil saber, com rigor, qual era a população cabo-verdiana (ou de origem cabo-verdiana) na Guiné nos anos de 1950, 60 e 70 (***)

(Pesquisa: IA / Gemini / Perplexity / ChatGPT LG | Revisão / fixação de texto, negritos: LG)


___________________


(**) Último poste da série > 22 de agosto de 2025 > Guiné 61/74 - P27141: A nossa guerra em números (36): Auxiliares da administração colonial: régulos, sobas e liurais...

(***) Estimativa do assistente de IA / Gemini. Pesquisa, revisão / fixação de texto:   LG


População Cabo-Verdiana na Guiné-Bissau em Meados do Século XX: Números e Proporções


Na metade do século XX, a presença de cabo-verdianos na então Guiné Portuguesa era uma realidade demográfica significativa, especialmente nos centros urbanos e na administração colonial. 

No entanto, a quantificação precisa dessa população, bem como a sua proporção em relação ao total de habitantes, enfrenta desafios devido à natureza dos registos da época, que distinguiam a população entre "civilizada" e "não-civilizada".

Com base nos dados disponíveis, é possível apresentar uma estimativa detalhada para 1950 e informações mais gerais para 1960 e 1970.

(i) 1950: Uma Presença Notável no Estrato "Civilizado"

No censo de 1950, a população total da Guiné Portuguesa foi registada em 517.290 habitantes. Deste total, a esmagadora maioria, 508.970 indivíduos, era classificada como "não-civilizada".

A população "civilizada" ascendia a 8.320 pessoas (1,61% do total), e é neste grupo que os dados permitem uma análise mais detalhada da presença cabo-verdiana. 

De acordo com estudos demográficos da época, nomeadamente os do investigador António Carreira, os cabo-verdianos representavam uma fatia importante deste estrato:

  • População de origem cabo-verdiana: Cerca de 1.478 indivíduos.

  • Proporção de cabo-verdianos na população "civilizada": Aproximadamente 17,8%.

  • Proporção de cabo-verdianos na população total: Cerca de 0,29%.

Esta expressiva percentagem na população "civilizada" reflete o papel que muitos cabo-verdianos desempenhavam como funcionários públicos, comerciantes e em outras profissões liberais na estrutura colonial.

(ii) 1960: Crescimento Populacional e Lacunas nos Dados Detalhados

Em 1960, a população total da Guiné Portuguesa era de aproximadamente 525.437 habitantes, um ligeiro aumento em relação à década anterior. Contudo, os dados detalhados sobre a composição da população "civilizada" por naturalidade para este ano são mais difíceis de apurar a partir de fontes abertas.

Embora o censo de 1960 tenha sido realizado e analisado em publicações como o "Boletim Cultural da Guiné Portuguesa", os números exatos da população de origem cabo-verdiana não estão facilmente acessíveis. É razoável presumir que a tendência de uma presença cabo-verdiana significativa nos centros urbanos e na administração se mantivesse, mas a sua quantificação precisa para este ano permanece um desafio.

(iii) 1970: O Impacto da Guerra e a Incerteza Estatística

A década de 1970 foi marcada pela intensificação da guerra de libertação/guerra colonial, o que torna os dados demográficos para este período particularmente complexos e, por vezes, divergentes. As estimativas para a população total em 1970 variam consideravelmente, situando-se entre 571.000 (550.000 a 600.000 habitantes para 1970 seria uma estimativa  mais realista e alinhada com os dados históricos).

A realização de um censo em 1970 é documentada, mas a sua execução e a fiabilidade dos dados em todo o território foram certamente afetadas pelo conflito em curso. Além disso, a abolição do estatuto do "indigenato" em 1961 alterou as categorias de recenseamento, o que dificulta uma comparação direta com os censos anteriores.

Não foram encontrados dados específicos que permitam quantificar a população de origem cabo-verdiana na Guiné-Bissau em 1970. É de notar que, durante a luta pela independência, a relação entre as populações da Guiné e de Cabo Verde foi complexa, com muitos indivíduos de origem cabo-verdiana a participarem ativamente no movimento de libertação (PAIGC), que lutava pela independência de ambos os territórios.

Em suma, enquanto para 1950 é possível apresentar um retrato relativamente claro da população cabo-verdiana dentro do quadro estatístico da época, para 1960 e 1970 os dados são mais escassos, impedindo um cálculo preciso da sua dimensão e proporção na população total da Guiné-Bissau.

sexta-feira, 13 de junho de 2025

Guiné 61/74 - P26917: Recordações de um furriel miliciano amanuense (Chefia dos Serviços de Intendência, QG/CTIG, Bissau, 1973/74) (Carlos Filipe Gonçalves, Mindelo) - X (e última) Parte : a guerra de nervos nos últimos seis meses




Guiné > Bissau > c- 1973/74 > Messe de Oficiais no QG/CTIG em Santa Luzia > "Eu, na messe e piscina em Santa Luzia;  ao fundo vê-se o ecrã de cinema, que funcionava à noite...Os sargentos podiam frequentar a piscina aos sábados, o cinema era acessível a oficiais e sargentos. 


Foto (e legenda): © Carlos Filipe Gonçalves (2025). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


O "senhor rádio", o Carlos Filipe Gonçalves (Kalu Nhô Roque (como consta na sua página no facebook):

(i) nasceu em 1950, no Mindelo, ilha de São Vicente, Cabo Verde;

(ii) foi fur mil amanuense, QG/CTIG, Bissau, 1973/74;

(iii) ficou em Bissau até 1975;

(iv) músico, radialista, jornalista, historiógrafo da música da sua terra, escritor, vive na Praia;

(v) membro da nossa Tabanca Grande desde 14 de maio de 2019, nº 790;

(vi) tem 28 referências no nosso blogue.
(*)


Recordações de um furriel miliciano amanuense (Chefia dos Serviços de Intendência, QG/CTIG, Bissau, 1973/74) (Carlos Filipe Gonçalves, Mindelo) 

IX (e última) Parte : a guerra de nervos nos seis últimos meses


Publico hoje os últimos extractos da 1.ª Parte do livro "Recordações de um Furriel Miliciano, Guiné 1973/74" (*)


Depois das férias em Cabo Verde na Ilha de S. Vicente, regresso a Bissau, no início de novembro  [de 1973], continuava a paranóia latente de guerrilha urbana. Uma situação que vinha de anos anteriores, mas era minimizada… existia, mas não se acreditava que existia! 

No bairro Cupelon e outros a explosão de granadas foi passando de ocasional a frequente, há confusões por tudo e por nada. Lembro-me da mãe de uma funcionária do “ChefInt” que morreu devido à explosão de uma granada! 

Ela estava numa festa, às tantas, um desconhecido foi impedido de entrar, por não ser convidado… momentos depois, ele lançou uma granada para o telhado! Bum! A estrutura do tecto descambou, um pau de cibe acertou no peito da infeliz, que estava sentada num canto. O autor deste acto… despareceu na escuridão!
 
Acontecimentos do género eram corriqueiros! (…).Nelson Herbert (citado anteriormente) que na época era um adolescente, recorda acontecimentos ocorridos desde 1972:

“Ataques atribuídos as células clandestinas dos nacionalistas do PAIGC em Bissau. Um engenho deflagra-se na viatura de um funcionário da PIDE-DGS estacionado junto a sede/cinema do Clube Desportivo, UDIB.” 

Manuel Amante também se lembra, ficou-lhe na memória o caso de “uma bomba que foi metida debaixo do carro de um graduado da polícia, que até era, mau! Não é? Tinha um Mercedes, na altura ele pavoneava-se com aquele Mercedes amarelo, tinha-o parado à porta da UDIB e foi colocada uma bomba que tinha sido transportada numa caixa de sapatos… (#)
 
No final de 1973 a situação em Bissau é extremamente tensa, todo o mundo está alerta e com medo. O ex-militar Abílio Magro e meu colega no QG fez o seguinte comentário:

 “Face ao crescente temor de que um dia a 'coisa' ia chegar a Bissau, o pessoal andava algo receoso e muito nervoso.” 

Nelson Herbert
recordou que “a tal distante guerra, travada contra os «homens do mato» (…) rompe o bloqueio da nossa ingenuidade e chega finalmente ao coração da capital provincial.” (…)

O fim-do-ano de 1973 para 74 passamo-lo de serviço, fechados no quartel! Dias antes do Natal tinha chegado uma ordem para colocar cortinas pretas em todas as janelas; logo depois, foram colocadas em todas as janelas. Dizia-se, era para evitar a localização dos edifícios através da luz, porque temia-se um ataque aéreo nocturno com aviões MiG que os turras tinham recebido em Conacri! 

Circulava no seio da tropa que a “ (…) Direcção Geral de Segurança (PIDE/DGS) na Guiné recolhera informações, dando conta que a guerrilha tem intenção, durante o Natal e o Ano Novo, de usar os MiG em bombardeamentos contra alguns aquartelamentos portugueses.”  (##)
 
Então, a malta preparou-se para o fim-de-ano… a borga seria nas repartições! As gavetas das secretárias ficaram abarrotadas de comes e bebes, que o pessoal foi comprando na cantina e trazia aos poucos às escondidas! 

No dia 31 de dezembro de 1973 saímos do serviço como sempre às 7 horas da noite, fomos jantar na messe. A partir das 20 horas voltámos ao serviço na repartição. Não havia nada para fazer! (…)

Mas, se em Bissau, a quadra do Natal e Ano Novo foi apenas um susto, no mato, a guerra continuava e estava no auge; o ex-Furriel Miliciano Enfermeiro, Abílio Alberto Tavares Faustino, recorda:

 Naquele mês de dezembro aconteceu o “(…) Não Natal de 73. A malta no Cantanhez , sobretudo, as guarnições de Cadique e Jemberém e mais a sul, a de Gadamael, vivia uma situação de exceção devido à crescente pressão por parte do IN (ou seja o PAIGC), aliada ao peso do factor psicológico e físico, o aumento de emboscadas (3 emboscadas, a 15, 17 e 18 de Dezembro) e flagelações que não deixavam de criar uma situação de insegurança. (…)

E assim, foi a passagem de ano, já estamos em 1974.

A queda de aviões Fiat e da localidade de Guileje, os ataques a Guidage e Gadamael, foram sem dúvida factos marcantes de 1973 que ainda estão na memória de todos; no meio da tropa continua a reinar a ansiedade! Mas, como já estamos acostumados com o clima de tensão, encaramos tudo com naturalidade e sempre numa perspectiva de ultrapassar as dificuldades. 

Assim, um início «atribulado» de Janeiro do novo ano de 1974, não é surpresa, pois a guerra continua. A «guerrilha urbana» não reconhecida como tal, vai estar agora bem visível… Uma realidade, que traz o medo e aumenta o sentimento de insegurança! (…)

Em meados de janeiro  [de 1974] soubemos que tinha sido lançada uma bomba contra um autocarro da Força Aérea… Que susto!"

O ex-militar Abílio Magro, citado anteriormente recorda: 

“Apenas me chegou alguma informação difusa de que teria sido colocada uma bomba no autocarro da Base Aérea, sem grandes consequências pelo facto de aquele se encontrar completamente vazio.” 

Nelson Herbert, citado anteriormente recorda: 

“Havia um muro mesmo defronte a Messe dos Sargentos da Força Aérea na Rua Engenheiro Sá Carneiro (…), esse muro foi armadilhado pelo pessoal da Zona Zero ou da clandestinidade do PAIGC em Bissau e foi parcialmente pelos ares… sem vítimas já que o autocarro por obra de qualquer irã resolveu fazer escala nesse dia, alguns minutos mais cedo! (…)"

Em meados de fevereiro, aconteceu uma explosão no QG. Foi pelas 7 da noite, eu estava de serviço de piquete, já tinha jantado na messe, ia para a formatura, depois deveria apanhar o transporte para o local da ronda. Quando a caminho do QG na rua direita depois da rotunda do poilão, ouvi: Buuummm! O chão tremeu! 

Instintivamente, atirei-me ao chão, resvalei logo ali na vala de escoamento de águas pluviais… seguiu-se o barulho de uma chuva de estilhaços, vidros partidos… etc. Depois, ouço um carro apitando… esperei algum tempo… tudo calmo, espreitei! Mas não vi nada! Levantei-me, olho à volta: reina um absoluto silêncio! O portão está fechado… 

Quando chego à porta de armas, vejo através das barras de ferro do portão, pedregulhos, lascas de parede… pastas de arquivo e papelada, caídos na parada! Não me deixam entrar! Há uma confusão total. Volto à messe, onde ouço bocas sobre o acontecido. Só depois das 8 da noite é que tudo se normaliza, lá fizemos a formatura e partimos para a ronda num bairro de Bissau.



O ex-furriel miliciano Abílio Magro recorda: 

“Encontrando-me eu a convalescer de uma operação às varizes a que tinha sido submetido no HMBIS e bebendo uma 'cervejola' sentado na esplanada da Messe de Sargentos de Santa Luzia, num final de tarde, dá-se semelhante rebentamento por ali perto, que julgo me fez levitar por breves segundos. Segue-se de imediato o buzinar contínuo e enervante da sirene de alarme do QG e a debandada geral, desordenada e atarantada do pessoal que por ali estava. "(…)

As coisas pioram com a explosão de uma bomba no Café Ronda, situado a meio da avenida que vai dar à Praça do Império. Naquele dia, eu estava de serviço de guarda, que habitualmente eu fazia na entrada principal do QG em Santa Luzia. À noite depois das 21 horas chegou notícia através do telefone que havia na porta de entrada e estava sob a responsabilidade da PM: houve uma explosão, na esplanada do Café Ronda que estava cheia de gente a tomar a bica depois do jantar! 

O ex-furriel miliciano Abílio Magro descreveu mais tarde: 

“Eu e mais dois ou três camaradas meus, tomamos o nosso cafezinho no balcão referido (Café Ronda) e seguimos de imediato para o cinema UDIB (um pouco acima na mesma avenida) para assistir à exibição de um qualquer filme que por lá andava. Poucos minutos depois do início da exibição do filme, dá-se um tremendo rebentamento lá fora e, quase de seguida se ouvem diversas viaturas com buzinadelas e sirenes, indiciando haver constante transporte de feridos. É interrompida a exibição do filme e surge uma voz aos altifalantes do cinema, solicitando a todos os médicos que eventualmente por ali se encontrassem, o favor de se dirigirem de imediato ao Hospital Militar". (…) 

No dia seguinte, estava eu, de folga, fui a Bissau, ver os estragos… vi que o telhado de zinco, ficou revirado, dava uma ideia da força da explosão. Um militar que estava no Café Ronda disse anos mais tarde, o que lhe ficou gravado mais profundamente na memória:

Foi “(…) a bomba no Ronda, por dois motivos, por estar bastante perto dela e os mortos e feridos mais graves estarem ao pé de mim, um dos mortos, e único na altura, era o empregado nativo que nos estava a servir, (…)

Há, entretanto, outros acontecimentos domésticos marcaram a tensão em Bissau em Fevereiro daquele ano de 1974. Naquele dia de manhã chegou a informação de que na véspera, a PM prendera um soldado Comando Africano, porque andava sem boina, não respeitou estar fardado conforme o regulamento! 

Os Comandos Africanos, tinham fama de destemidos e combatentes intrépidos, lá onde havia «barulho» estavam eles, logo, achavam-se no direito de ser respeitados, mesmo quando desrespeitavam ninharias como essas “coisas” do RDM (Regulamento de Disciplina Militar) sobre o fardamento! 

47 anos mais tarde, coloco/recordo aquele acontecimento na página “Facebook – Guiné Recordações” e solicito depoimentos aos ex-militares da guerra colonial. 

Fernando Pinto recorda: 

“Estava no BENG (Batalhão de Engenharia) 447 Brá, Bissau, ouvi falar nisso, não sei mais nada!” 

António Almeida diz: 

“Foi verdade, eu na altura era condutor do comandante militar. Todos os grandes ficaram em sentido, fomos para o Q.G até tudo acalmar, com a intervenção do dito capitão. Mas, não foi só dessa vez que a estrada de Santa Luzia pôs tudo em sentido, as coisas eram logo abafadas "(…). 

Refere então a bomba que explodiu no QG:

 “Eu, estava lá e fui de imediato buscar o comandante que ficou ferido!” 

José Carapinha descreve o que viu: 

“Certo é que houve bronca (dos Comandos) e da grossa! Como começou não o sei! O que vi: os Comandos Africanos, desde Oficiais a Soldados armados, nota bem, com mocas e bastões, isso vi, outro tipo de armamento não; tudo isto durante a tarde junto da Amura (Quartel da PM e sede do Comando Chefe). Já pela noite ouvi o «arraial» algures lá para os lados do Alto-Crim!” (…)  (###)

 No seguimento destes acontecimentos, em Bissau, os nervos estão à flor da pele! Já estávamos em março, quando certo dia logo após a minha chegada à repartição contaram-me a bronca da véspera: um sururu no cinema ao ar livre, ao lado da Messe dos Oficiais. Já tinha começado o filme… quando aconteceu um movimento de pânico! Todos a correr e a fugir! 

O ex-furriel miliciano, Abílio Magro que lá estava recorda:

 “De repente vê-se um clarão e a debandada foi geral! Com a confusão, algumas cadeiras «ensarilharam-se» provocando tropeções e quedas e, os que caíam ao chão eram espezinhados pelos outros, como foi o meu caso.” 

Explica então a brincar: 

“A bomba tinha sido uma caixa de fósforos que se incendiara a um soldado, enquanto acendia um cigarro em cima do muro e que se terá desequilibrado!” 

A «paranóia» estava instalada! Mas, com o moral alto e muita esperança, lá vamos passando os dias, trabalhando normalmente. Vamo-nos adaptando ao evoluir da situação… As jantaradas nos restaurantes de Bissau e festas para que sou convidado fazem esquecer… minimizam este ambiente tenso. (…) 

E assim, vou encerrar a publicação dos extractos que dão uma ideia do livro que um dia poderá ser publicado. Extractos dos capítulos seguintes a este foram os primeiros a serem aqui publicados, descrevem o 25 de Abril e a situação que se viveu em Bissau em maio/junho de 1974.

Julgo, fui o único militar da tropa portuguesa (não originário da Guiné) que ficou em Bissau e lá viveu até 1975! Os meus camaradas militares cabo-verdianos todos regressaram. 

Logo, a 2.ª Parte deste livro, é sobre chegada do PAIGC a Bissau, os acontecimentos antes e depois do dia 10 de Setembro de 1974, quando Portugal reconheceu o novo país… Ocorre então uma reviravolta na sociedade, acontecem coisas inimagináveis, reina um clima de incerteza e desconfiança no futuro. 

Se houver um eventual interesse na 2.ª Parte do Livro, da parte dos leitores e da direcção desta página do Facebook "Tabanca Grande Luís Graça» e do blogue "Luís Graça & Camaradas da Guiné",  então poderei iniciar a publicação de mais alguns extractos. 

___________________

Notas do autor:

[#]   No livro consta a entrevista com um dos participantes que explica, como decorreu essa acção; mas tratando-se de extractos, não poderei publicar tudo na integra agora. (….)

[##]  Vários documentos, descrevem o problema de sobrevoos de aviões da Guiné-Conacri desde 1963 e “No dia 2 de Agosto de 1973, o jornal inglês Daily Telegraph dá conta de que o PAIGC está a treinar pilotos na União Soviética para usar aviões MiG, a partir da Guiné-Conakry, em possíveis ataques contra a colónia portuguesa.”

[###]  Há mais depoimentos no livro, de militares e de pessoas que viviam em Bissau sobre este acontecimento. (…)

(Revisão / fixação de texto, itálicos, negritos,título: LG)

_______________

domingo, 1 de junho de 2025

Guiné 61/74 - P26871: Recordações de um furriel miliciano amanuense (Chefia dos Serviços de Intendência, QG/CTIG, Bissau, 1973/74) (Carlos Filipe Gonçalves, Mindelo) - Parte VI: o pesadelo do tenente-coronel: as batatas e o frango congelado!...



Foto nº 1


Foto nº 2


Foto nº 3

Fotos > Legendas > 

Foto nº 1 >   Quartel de transmissões, em Santa Luzia, Bissau, com edifícios no estilo da ChefInt e outros do QG/CTIG;  

Foto nº 2 > Viaturas Berliet e Unimog utilizadas nas colunas de reabastecimento ao interior; 

Foto nº 3 > LDG (Lancha de Desembarque Grande),  utilizada nos reabastecimentos ( esta é a no. 101)


(Cortesia do Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné)


1. Continuação de "Recordações de um Furriel Miliciano, Guiné 1973/74":



O Carlos Filipe Gonçalves, Kalu Nhô Roque (como consta na sua página no facebook):

(i) nasceu em 1950, no Mindelo, ilha de São Vicente, Cabo Verde; 

(ii) foi fur mil amanuense, ChefInt, QG/CTIG, Bissau, 1973/74; 

(iii) ficou em Bissau até 1975; 

(iv) radialista, jornalista, historiógrafo da música da sua terra, escritor, vive na Praia;

(v) membro da nossa Tabanca Grande desde 14 de maio de 2019, nº 790; 

(vi) tem 2 dezenas e meia de referências no nosso blogue.(*)


Recordações de um furriel miliciano amanuense (Chefia dos Serviços de Intendência, QG/CTIG, Bissau, 1973/74) (Carlos Filipe Gonçalves, Mindelo) (*)

Parte VI:  o pesadelo do tenente-coronel: as batatas e o frango congelado!...



Depois da minha chegada, tive de me adaptar ao calor intenso, descobri a cidade Bissau, conheci muita gente. 

Hoje descrevo: o trabalho, a rotina no dia-a-dia, o ambiente de guerra que se vivia na calma aparente de Bissau

O tempo passa e paira sobre nós o ultimato do tenente-coronel, para esvaziar as prateleiras dos mais de mil “autos de víveres e artigos de cantina” que estavam ali numa estante. Por isso, tenho de aprender depressa e logo iniciar o trabalho de minutar a análise e propostas de decisão.

O alferes vai-me ajudando a escrever a respectiva “informação” para despacho superior. O colega furriel veterano também me ajuda, dá-me uns toques e assim vou aprendendo a linguagem jurídica; mas o que considero um trabalho de aprendizagem, foi logo submetido ao chefe, sem que eu ainda tivesse a necessária experiência. Não tarda, o tenente-coronel chama-me ao gabinete para me admoestar: “Então, nosso furriel? Como é que é?” E blá blá blá… etc.

O alferes lá me desculpava, assumia os erros… e assim fui apanhando traquejo e experiência.

Neste ambiente de guerra e mortes, a tropa no mato, tem quase tudo do bom, para manter o moral e boa disposição! As cantinas disponibilizam boas bebidas, desde whiskies (de qualidade) a licores Glayva, Tríplice, aguardente velha, etc., vinhos engarrafados (do melhor), muita cerveja, os mais diversos artigos de toilete, etc. etc. E são enviados os mais variados produtos para a confecção da alimentação diária. 

A quebra, destruição deste «stock» devido à manipulação aquando do embarque e descarga e transporte, bombardeamentos, etc. dá origem aos autos que são enviados para apreciação na «Secção de Autos» onde trabalho…


A CHEFINT resolve ainda autos de fardamento, controla os consumos de víveres, fiscaliza a contabilidade das unidades, enfim tudo e mais alguma coisa. Manuel Amante, um velho amigo e colega do liceu que foi colocado no final de 1973 na Chefia da Intendência, explica:

“Nós fornecíamos material e equipamentos e tudo… aliás a Manutenção Militar estava sob a coordenação ou orientação da… Chefint – Chefia da Intendência) e eu fui colocado na secção que… vá lá, digamos, a «secção funerária», onde nós é que geríamos os caixões, portanto, eu fui chefe dessa pequena secção onde nós geríamos os caixões de chumbo, de madeira, de zinco, consoante a naturalidade de quem tivesse morrido, assim se distribuía.

 Portanto, eu, mais ou menos nessa altura, eu tinha uma ideia de como é que eram as operações. Apesar dos quartéis terem um stock de caixões, quando faltavam, eles requeriam e nós dispensávamos isso."


Com o passar dos dias sinto-me integrado na secção d
e autos de víveres, onde o ambiente é de conversa e conhecimento mútuo. Os três civis, colegas de serviço são: o Demba Baldé, que tem uma cara horrível, toda desfeita por queimaduras…, é ele quem trata do arquivo; há um vivaço chamado, Issa Baldé que é o dactilógrafo; o Claudino, trata de expedientes administrativos, é um homem na casa dos 30 anos, de pele clara, tem um bigodaço, parece ser cabo-verdiano.

O alferes comenta a brincar: 

“Olha, na Guiné são todos: Mané, Baldé, Turé… Camará, Embaló, Djaló, Dabó… Eu confundo sempre os nomes!”

Apesar de muitos terem apelidos homónimos, não são, nem familiares, nem parentes. Há mais civis nas outras secções, a maioria guineenses, mas também há descendentes de cabo-verdianos.

O Demba ao me ver sair várias vezes para ir beber e voltar todo molhado em suor – acho que sentia pena de mim – certo dia ao me ver assim, não resistiu e disse: 

“Oh! Gonçalves, assim não vais poder aguentar a comissão! Tens de te adaptar ao calor! Toma lá, põe na boca, um pedacinho chega!"

Estendeu a mão com algo e diz:

"Vai ajudar-te a controlar a sede!”

Perguntei o que é isso, ele responde:

“Noz de cola! Põe isso num canto da boca!”

Desconfiado, tomei o pedacinho daquele fruto verde por fora, branco por dentro, a textura parecia a de um pedaço de tâmara meio verde, mas não meti na boca. Aceitei a oferta por cortesia. Demba também não comentou a minha atitude. Passados uns dias, vendo a minha aflição, Demba voltou a alertar-me:

“Põe o pedacinho de cola na boca e a sede vai acabar!”

Assim fiz, senti então uma sensação de frescura na boca e na cara, a saliva aumentou… Agora o meu problema é: ir frequentemente cuspir na casa de banho! Passadas umas semanas, comecei a adaptar-me ao calor intenso da Guiné, já nem utilizava a noz de cola, bebia normalmente.

Demba Baldé é muçulmano, reza todos dias às 11 da manhã e à tarde às 17 horas; ele levanta-se, vai a um canto, estende um pequeno tapete no chão e faz as suas orações. 

Demba, notou o meu espanto por ele estar muitas vezes a rezar com um rosário nas mãos enquanto trabalhava; por isso ele tomou a iniciativa de me explicar os preceitos da fé muçulmana, um mundo que eu desconhecia: no Ramadão, tinham de rezar todo o dia e fazer jejum, só comiam à noite; quem pode frequentar a mesquita; peregrinação a Meca, quem lá foi, passa a ter título de «El Haaj», ou “Aladje”; e isso e aquilo… etc. e tal.

Curioso, perguntei apontando, o que era aquele rosário que ele tinha nas mãos? Fez-se de desentendido, não insisti. Prosseguiu explicando que nomes da Bíblia que se diz, serem cristãos, vêm do árabe: Abraão é Ibrahim, José vem de Youssef, etc. 

Quanto ao rosário, a explicação veio pelo Issa Baldé: chama-se “tashby”. O Issa diz que também é «Fula», explica que o seu nome significa «Jesus» em árabe, aliás fez questão de sublinhar, «Issa» é que é o verdadeiro nome de Jesus! 

Mas, este nosso dactilógrafo, embora muçulmano, não era praticante, fumava muito e dava-se muito bem com o Claudino,  outro grande fumador,  gozava com o Demba, quando ele me contava estas estórias de religião ou da etnia «Fula».

Demba também me explicou que é da etnia «Fula» com orgulho diz: 

“Nós somos diferentes das outras etnias da Guiné porque sabemos ler e escrever, temos o nosso próprio alfabeto!"

O ex-militar Manuel Dinis, comentou anos mais tarde: 

"Os fulas, ardentes propagandistas do islão, propagavam a escolaridade em árabe. A população manifestava-se algo colaborante, mas assumia uma posição neutra em relação ao IN (inimigo) de maneira a, agradando a uns, não desagradar aos outros.”

Comecei então a ter uma outra noção da Guiné e da sua diversidade. Ao mesmo tempo tentava descobrir alguma ligação minha, com esta terra e com a sua gente. Minha mãe, dizia sempre que a avó dela, era da Guiné, que era filha de um régulo «Fula»! Ou era «Papel»? 

Bem, não importa… Desde pequeno que ouvia contar que a minha bisavó tinha sido levada da Guiné para Cabo Verde pelo meu bisavô, um «badio» branco, filho de metropolitano,  natural de Vilar de Mouros, norte de Portugal,  que se casou com uma branca da Ilha do Fogo (ela foi sepultada no cemitério da Praia em 1700 e tal… e lá estão outros membros da família “Abreu Rodrigues Fernandes”),

Mamã contou-me, naquela época, foi um escândalo na cidade da Praia, quando o director da alfândega (o meu bisavô),  branco loiro, olhos azuis, apareceu amantizado com uma preta da Guiné, onde esteve destacado em serviço. 

Mamã dizia que ela cozinhava aquelas comidas da Guiné e contava aquelas «estórias» fantásticas do mato e animais selvagens… Explicou: foi vovô (meu bisavô) quem a ensinou a ler e escrever, ter boas maneiras, comprava-lhe roupas caras! Viveram felizes até quando já velhinhos a morte os separou.

Mas, nunca contei esta minha história ao pessoal da repartição de autos, nem a qualquer outra pessoa em Bissau! Conto hoje, pela primeira com a devida vénia e orgulho…

Enquanto se trabalhava no duro para limpar as prateleiras, daqueles mais de mil autos e outras tantas dezenas que iam entrando todos os meses, falávamos uns com os outros e havia muita camaradagem, mas com o devido respeito pela hierarquia e funções de cada um. 

O alferes era quem brincava muito e gozava com as coisas mais simples, era uma forma de se manter moral alto e passarmos o tempo menos angustiados. Porque, não podíamos fugir dos acontecimentos do dia-a-dia, sempre sangrentos, que nos chegavam, ora sob a forma de «relatos» comentados à boca fechada, ou nos relatórios que acompanhavam alguns autos, como justificativa de ataques e flagelações…

Havia também informações que chegavam através da ERG (Emissor Regional da Guiné) nos programas «Guiné Melhor» entre as 19 e 20 horas. Em crioulo, português e línguas nativas, apresentava-se a visão oficial dos acontecimentos no teatro de operações (TO). Muitas vezes havia relatos de militares ou de outras pessoas sobre os ataques a colunas de transporte, emboscadas, etc. seguidos de comentários por gente da emissora.

De passagem por Bissau, vinham do mato muitos militares, uns a caminho de férias na metrópole, outros por evacuação médica, outros simplesmente enviados, para uns dias de folga para descansar, porque já estavam «marados» e tinham comportamentos estranhos… 

Toda esta malta trazia novidades, tinha «estórias» para contar, que esclareciam muitos boatos que circulavam… No fundo não eram boatos, mas sim notícias truncadas ou distorcidas de acontecimentos reais. A malta da companhia de transportes estava muito perto de nós, num quartel ao lado do QG. Quando voltavam das missões de reabastecimento contavam as ocorrências.

Recorde-se, Bissau está cercada por um campo de minas, por arame farpado e pela guerra! Não se pode ir a nenhum lugar no interior porque é perigoso! Nhacra, uma localidade muito próxima, é atacada com uma certa regularidade. 

Eu consegui ir uma vez a um pouco mais perto, a Safim… foi em maio de 1973, fui comer umas ostras frescas, mas era perigoso. Havia lá um restaurante, fui logo apresentado ao dono e à esposa, ambos com um excesso de peso que salta à vista, mas são muito simpáticos, sabem receber os fregueses. Decorreu, então, um agradável petiscar de ostras, claro, muita conversa, nem me passou pela cabeça a guerra, ou qualquer perigo, que estava ali perto.

A circulação pelo território da Guiné nesta altura só é feita através de colunas militares e pelas LDG (as lanchas militares de desembarque  grandes) também usadas nas operações de reabastecimento; os barcos civis muitas vezes são escoltados. Os meios aéreos destinam-se às operações militares, algumas vezes fazem operações urgentes de reabastecimento... lançamentos de víveres em paraquedas, caso do frango congelado e rações de combate.

Nos relatórios «confidenciais» que acompanhavam os autos e passavam pelas minhas mãos, vinham muitas vezes descrições dos ataques e a lista dos danos causados, claro, a mim só interessava a lista dos artigos de cantina destruídos: tantas centenas/caixas de garrafas de cerveja partidas, tantos disto e daquilo… destruído, molhado, etc. 

Impressionava-me a menção final da quantidade de munições utilizadas na resposta ao IN: disparados tantos mil cartuchos de tantos milímetros, lançadas tantas granadas, etc. etc.


O termo "svenska schack", em sueco,   quer dizer  "xadrez sueco": lê-se no tabuleiro em cima da mesa... Presume-se que tinha sido uma oferta ao PAIGC, pelo Estado Sueco ou por uma associação sueca que apoiava a causa do partido de Amílcar Cabral...  A foto deve ser c. início dos anos 70. Em primeiro plano, uns óculos de sol e a ponta de uma arma (talvez uma Kalash) (Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné)


Casa Comum | Instituição:Fundação Mário Soares e Maria Barroso | Pasta: 05222.000.141 | Título: Júlio de Carvalho, Tchifon, Cláudio Duarte e Valdemar Lopes | Assunto: Os combatentes caboverdianos Júlio de Carvalho [Julinho], Tchifon, Cláudio Duarte e Valdemar Lopes [da Silva] jogando xadrez numa base do PAIGC | Data: 1963 - 1973 | Observações: Valdemar Lopes da Silva foi professor no Centro de Instrução Política e Militar (CIPM) do PAIGC, a partir de 1970 | Fundo: DAC - Documentos Amílcar Cabral | Tipo Documental: Fotografias


Citação:
(1963-1973), "Júlio de Carvalho, Tchifon, Cláudio Duarte e Valdemar Lopes", Fundação Mário Soares / DAC - Documentos Amílcar Cabral, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_43496 (2025-5-31)

(Reproduzido com a devida vénia...)



Um dia chamou-me a atenção num desses relatórios a alusão a um tal «JJ» que era descrito como um cabo-verdiano que andava por aí com um bigrupo do PAIGC cujos ataques, dizia-se, eram destemidos e implacáveis. Parecia uma desculpa para tanta destruição descrita! Outra vez, vi uma referência a um tal «Chifon» que juntamente com o «JJ» fizeram um grande ataque, houve dificuldades na resposta ao IN. 

[ Nota do editor LG: Esse JJ seria o Júlio de Carvalho, "Julinho" ? Ou o Jaime Mota, morto em Canquelifá, em 7 de janeiro de 1974 ? Ou ainda o Joaquim Pedro Silva, "Baró" ?.Ou, mais provavelmente, o João José Lopes da Silva ?... Por outro lado, no Arquivo Amílcar Cabral, há uma foto, que reproduzimos acima em que aparece o "Tchifon", seguramente nome de guerra, a observar uma partida de xadrez.]

Dizia-se claramente naqueles relatórios que os cabo-verdianos e cubanos é que eram culpados ou lideravam ataques tão violentos, isso parecia uma justificação. Lia essas informações, mas nunca comentei com ninguém. Documentos classificados é ler e esquecer. 

Algum tempo depois, pelos autos que íamos resolvendo daquela pilha dos mil e dos outros tantos, que iam chegando, saltava à vista: a «batata» era o grande e maior problema na logística. Devido ao clima, apodreciam toneladas de batata, que constituíam perdas enormes! A tropa gostava de batata e era reticente no consumo de feijões e massas, que requisitavam, mas iam comendo aos poucos, logo, muitas vezes, acabavam por exceder o prazo, apodreciam, constituindo mais perdas e claro, dando origem a autos…

O tenente-coronel andava preocupado, por isso me solicitou um gráfico sobre perdas de batata por meses desde o ano anterior. Para evitar o apodrecer de toneladas e toneladas de batata, até tinham sido instalados aparelhos de ar condicionado em muitos armazéns!

Depois da batata, o pesadelo do tenente-coronel era o frango congelado. É que o pessoal no mato não cumpria as regras de descongelamento estipuladas nas NEP, logo, quilos e mais quilos de frango ficavam impróprios para o consumo… O calor encarregava-se do resto… eram elaborados autos e mais autos… cuja decisão era quase sempre: a pagar pelo pessoal responsável!

(Revisão / fixação de texto, negritos: LG)

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Notas do editor:

(*) Último poste da série > 27 de maio de 2025 > Guiné 61/74 - P26853: Recordações de um furriel miliciano amanuense (Chefia dos Serviços de Intendência, QG/CTIG, Bissau, 1973/74) (Carlos Filipe Gonçalves, Mindelo) - Parte V: aqui sinto-me em casa, encontro tias, primos, vizinhos, colegas de escola e do liceu...

(**) Vd. poste de de 31 de dezembro de 2022 > Guiné 61/74 - P23935: Antologia (88): Cabo Verde: história das suas forças armadas, constituídas a partir de um núcleo de antigos combatentes do PAIGC (excertos de artigo de Pedro dos Reis Brito, "Revista Militar", n.º 2461/2462, de fev / mar 2007)